quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Lápis nº2

Era uma metade de lápis sem ponta. Não tinha cor. Grafite. Com os dentes apontei. Mastiguei a madeira e depois engoli. Comecei a desenhar. Chão. Paredes. Teto. Geladeira. Fogão. Liquidificador. Desenhei em tudo. Não tinha forma. Mas, não era abstrato. As pessoas tem a mania de achar que um é antônimo do outro. Quanto mais eu riscava, mais fina ficava a ponta do lápis. Os riscos já nem davam para ser vistos. Foi a hora em que fiz os melhores desenhos.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Antônio para Antônio (Ainda)

Lapa, 13 de outubro de 2009
Antônio,
Confesso que estou impressionado com o sue cinismo. Fiz uma pausa de dois dias nessa frase e percebi que ainda é possível vivenciar uma série de surpresas bem mais desagradáveis. Sim, você é cínico, mas ainda é possível encontrar gente pior. Ou melhor, versões suas que muito se parecem, mas que se diferem na intensidade e forma do mal que causam. É claro que tenho que lutar contra a minha tendência a me fascinar por esse tipo. Mas, antes disso preciso deixar de pensar que no fundo essas experiências mal-sucedidas possam me beneficiar. Já tive ganhos demais com isso, creio ser a hora de usá-las. Não é possível que seja um tipo de vivência meramente acumulativa que comporia um inventário de angústias e fracassos vividos que são listados aos amigos de forma mórbida. Antônio, comecei essa carta para você e agora percebo (termino) que é para todos os outros perdidos entre passado, presente e futuro. Sendo cada um deles pura criação minha, finalizo essa carta e a destino para mim.

Sem mais

Antônio

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Avenida Marechal Rondon

Apenas carros em alta velocidade. O sinal vermelho é uma pausa estranha ao fluxo. Senhoras gordas e mulheres em micro-shorts atravessam correndo a avenida. Tudo parece que vem do nada e segue para lugar nenhum. Esperando o ônibus, ela anuncia a notícia que acabava de ouvir no seu mp3 da Uruguaiana: o Brasil ganhou. Tinha uma felicidade solitária no seu riso. Se sentia a mensageira das boas novas. Só ela sabia o que aquilo significava para si. Nunca mais voltaria ao hospital da redondeza. Quando o 510 chegou, entrou e sentou alegre numa cadeira na janela. Dois dias depois, morreu.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

Antônio para Antônio

Lapa, 21 de setembro de 2009

Antônio,

A intenção é que você nunca receba essa carta. Estou sozinho no meu quarto trancado. Não tenho cama, as paredes sem meus quadros e o guarda-roupa com as portas soltas. Falta vida aqui dentro. Durmo em dois colchonetes finos emparelhados cobertos por uma colcha grossa e um lençol novo. Uso dois travesseiros. Um de espuma e outro de penas de ganso e me cubro com uma manta que comprei no Nordeste. A cortina não tampa toda a janela e o som de fora entra sem pudor junto com a luz do dia. Sonhei com você na noite passada e é por isso que estou escrevendo. Pelo sonho e não por você. Minha campainha tocou e pelo olho-mágico da porta não pude identificar mais que um vulto. Abri a porta e você sorriu. Estava de calça jeans com a barra da cueca a mostra. Sem camisa e suado ou molhado – não lembro do gosto que tinha quando te lambi. Sua pele estava acenourada como se você morasse à beira-mar. Seu cabelo estava gostoso de passar a mão. E seu sorriso foi o catalizador para te jogar no meu colchão de casal que estava na sala. A cada fechada de olhos para te beijar, você ficava mais sem roupa. Lembro do reflexo do sol na pelugem da sua bunda e da voracidade com eu passava a língua nela. Minhas mãos deslizavam pelas suas costas em movimentos ritmados que sempre terminavam por suas suculentas carnes. Apertava seus braços e massageava seus mamilos com as pontas dos meus dedos. Beijava sua boca deitado em cima de você. Sua barba avermelhava o meu rosto. Tínhamos a cor de uma fogueira. Eu segurava seu pau pequeno e fino enquanto te invadia. Você me engolia quente. Nos engolíamos. Deitado em cima de você, olhava seu rosto encharcado e aquele mesmo sorriso da porta. Tentávamos engatar uma conversa pós, mas nenhuma palavra surgia. Mentira. Às vezes conseguíamos formar uma frase, mas nunca tinha nexo. Sorriamos como nos entendêssemos, mas na realidade não. Olhávamos um para os olhos do outro e não nos víamos. Quando acordei, percebi que nunca existíamos. Sempre fomos enuvenzados.

Sem mais

Antônio

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Estrada do Galeão

Exatamente na hora marcada, ele chegou à porta do aeroporto. Me esperava no desembarque azul – internacional. Seria difícil ele entender que Vitória não fica em outro país? O carro só tinha duas portas, era pequeno e sem ar-condicionado. Desde quando carioca ignora o calor? Disse que foi de bom grado, mas porque era no Galeão, se fosse o Santos Dummont, ele não iria. Alegou que não gosta de sair da Ilha pra nada. Tomei a direção do volante e joguei o lado dele do carro contra um caminhão de carga. Agora, ele vai dormir na geladeira do IML, no Centro, para deixar de ser mané.

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Pronomes

Suas mãos
cabelos dele
A boca
dele
dentro da sua
Você
nele
Ele
seu
Meus olhos

BH - Rio Setembro/2009 01h19

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Roller-tip pen 0.5 (Liquid Ink)

Na pressa você deixou a caneta destampada sobre minha cama. Só notei quando vi meu lençol branco todo manchado de tinta azul. Tarde demais. Já tinha dado tempo do chão do quarto ter sido inundado e agora, os meus pés brancos estavam azulados. Corri para jogar pela janela aquela caneta maldita, mas no caminho as paredes e até mesmo o teto ficaram azuis. Enlouquecido, me encostei na parede da sala e contemplei aquela imagem à la Derek Jarman. Só faltavam as vozes ao fundo. Arranquei as roupas que ainda vestia e rolei pela poça de tinta até ficar completamente azul. Meu cabelo pingava de tão encharcado. Fui atrás de mais canetas de outras cores para quebrar com a monocrômia. Apenas achei da mesma cor, apesar das embalagens dizerem que eram vermelhas, verdes e pretas. Resolvi então tingir todas as minhas roupas, cobertores e toalhas. A partir daquele momento, a tirania do azul estava decretada. Geladeira, fogão, ventilador... nada, mas nada mesmo ficou de fora. Nem mesmo meus dentes e minha língua. Por fim, só restava uma coisa de cor diferente: meu sangue.

terça-feira, 28 de julho de 2009

RUA DOS INVÁLIDOS

Da minha janela vejo uma árvore seca. Prédios altos sendo vagarosamente iluminados. Chove. Um vento muito forte deforma todos os guarda-chuvas e sombrinhas que o desafiam. À esquerda, um prédio antigo transbordando sofrimento no lodo de sua pintura. À direita, a dor a cada visita morta que chega. Abaixo álcool e sujeira mesclados com a felicidade de um gol. De frente, uma árvore seca. Sem folhas, apenas galhos. Assiste a tudo aquilo sabendo que no final todos ficaram como ela.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Último carnaval

Só hoje encontrei a senha do meu e-mail antigo. Eu já tinha feito o esboço dessa carta. Resolvi que seria assim, por papel, que mais uma vez iria te procurar. Desde que apaguei meu perfil no orkut e meu fotolog, nunca mais trocamos uma mensagem. Não tenho usado nenhum tipo de messenger e nunca mais abri meu skype. Você jamais me passou seu telefone e também nunca pediu o meu. Enfim, não havia como a gente se comunicar.

Não sei como contar que eu não morri. Não tenho idéia de onde surgiu essa história. Quando percebi, o enterro já estava marcado, túmulo encomendado e as coroas de flores chegando. Tão lindas e tão caras. Ganhei um obituário de uma página no primeiro caderno do jornal de domingo e a metade dos classificados eram mensagens lamentando a minha “precoce partida”. Meu velório foi concorrido e demorado. Por fim, minha família que nem é judia se trancou com setes dias seguidos dentro de casa em luto. Só saíram para a missa na catedral metropolitana com o cardeal arcebispo.

Fiquei confuso com a situação, mas não posso mentir: eu fiquei deslumbrado com tudo. Minhas melhores fotos no jornal, “tão jovem e bonito para morrer”, lamentou uma leitora da seção de cartas. Até no busto de bronze no jazigo, fiquei bem. Como eu poderia simplesmente dizer que era tudo um engano, que eu estava (estou) vivo, mesmo que gordo e com alguns anos a mais na face? Não dava. Tinham eternizado a minha imagem. A mesma que ficou para você naqueles três dias de carnaval que passamos juntos numa praia na divisa entre o Espírito Santo e a Bahia. Morto, era como se aqueles dias fossem intermináveis, em loop.

Não sei se agora você ainda lembra. Mas, eu nunca esqueci. Você foi meu grande e eterno amor de carnaval. Sazonal, mas intenso. Espero muito que um dia a gente volte a se corresponder e que você entenda tudo o que fiz, ou melhor, que deixei de fazer. Anseio que você entenda meu encantamento por essa morte falsa, porém onírica. E que também compreenda que tive receio de que, depois de terem feito esse luto por mim, não quisessem chorar mais uma vez quando, de fato, eu morresse. Você não tem idéia de como é triste uma funeral vazio. É como se a gente não tivesse morrido.

Um beijo com saudade,

H.S

Vitória, 13 de Março de 2009.

quarta-feira, 10 de junho de 2009

programa de vovó

Acho televisão uma coisa enfadonha. Antes que pensem que é birra aos avanços tecnológicos, já digo que não. Até porque, qual a grande tecnologia da/na televisão? A maioria das novelas tem a história parecida com as três primeiras que vi antes de ir para o colégio de freira no norte do estado. Acredito que programa de fofocas e receita é coisa de/pra velha que não tem o que fazer em casa. A vovó, aqui, é ocupada. Assistir a telejornal é coisa de masoquista. E a vovozinha, aqui, é uma dominatrix. Prefiro desligar a TV e viver a pornografia. É assim que volto do mercado sempre com o carrinho cheio.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Cerveja, por favor

Não sei quem inventou que velho tem que andar com velho? Essas excursões da “melhor idade” me apavoram e me deprimem. Detesto ter que esperar as “amigas” que a cada dois passos, param para “tomar um arzinho”. Acho “o” fim, aquelas que não podem ver uma planta bonita e já querem pegar um muda. Se não cuidei de criança, lá vou cuidar de uma avenca?! Quando me aparecem com suco ralo e sem açúcar na hora do almoço, peço para morrer. Eu tomo é cerveja! E nem adianta me dizer qual é “o” segredo dessa torta de camarão com palmito. De-tes-to essa mania de cozinhar.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Manchas de você

A cadeira está no meio da sala. Parada. Imóvel. Quente. Os jornais soltos se espalham a cada rajada de vento. Os Classificados estão grudados sobre a televisão. A minha camisa ainda pendurada na cama tem você em manchas. Assim como a minha parede e meu piso de mogno branco. É bem capaz que eu mesmo tenha manchas de você na minha pele. Pelo meu peito. Barriga. Lábios. E nuca. Se eu reparar bem vou achar o desenho de um leito de rio percorrendo minhas coxas e desaguando nos intervalos entre os dedos de um dos meus pés. Não vou desconsiderar as manchas mais profundas – na mente, na alma e na lembrança. É bem capaz que a nascente do tal rio seja bem no meio dos meus olhos, entre eles. Dificilmente, antes de chegar às pernas, tudo deve ter percorrido um acidentado caminho pelo meu corpo. Sou todo uma grande mancha de você, a ponto de, no final, ter apenas respingos de mim. Quando me olho no espelho pendurado em frente a cama, me enxergo transparente com veias expostas sem sangue e preenchidas por você. Venoso.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Pele de Veludo

Jamais freqüentei baile da terceira idade. Não sei jogar dominó e a tal regra do proibido dar caroço, me incomodava. Isso de ter que dançar com todo mundo não me agradava. Era só o que me faltava não poder recusar parceiro depois de velha. Sempre fui enxuta. Muito bem cuidada. Quarenta por cento da minha pensão era gasto em produtos da linha Renew. Ou seja, o mínimo que eu queria era bailar com homens de quarenta anos com fôlego de vinte in natura. E se tem uma coisa que aprendi nessa vida era saber exatamente onde encontrar o que precisa e pagar pelo preço justo.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Códigos e Alianças

Sempre achei tricô um porre. Quando meus netos nasceram, eu já sabia os códigos da Hermes e da Quatro Estações de cabeça. Nunca veio um só conjuntinho de cor diferente ou número menor. Desde nova achava cabelo grisalho um pavor e aderi ao acaju antes do baile de debutante. Nunca gostei dessa tradição de duas alianças após a viuvez. Quando meu primeiro marido morreu, transformei a aliança em um brinco – ela era fina e só deu para um. Dois dias após a morte do segundo, fiz o outro brinco e com o ouro que sobrou um pingente de coração trancado. Pena que não deu para fazer a chavinha.

sábado, 11 de abril de 2009

6 anos de Esfera dos Intocáveis

Um dia resolvi que teria um blog. Para contar histórias e causar intrigas. Escrevi sobre fatos e desenharia sobre fotos. Jogaria fumaça na verdade. Me esconderia nas palavras. Numa tarde comecei esse blog. Sem assunto. Sem computador. Sem estilo. Passou um ano, passaram dois, três, quarto e cinco anos. Numa noite qualquer esqueci de lembrar. Tudo estava tão diferente. E talvez esse esquecimento fizesse parte do blog ou melhor da Esfera dos Intocáveis. Hoje, seis anos depois eu tenho um blog. Por vezes, esqueço que o tenho. Mas, sempre terei. Sem fumaças, sem fotos, sem revisão e sem muitas coisas. Inclusive sem um sexto texto comemorativo!

sábado, 4 de abril de 2009

A chegada

Nunca fui tão feliz na minha vida. E olha que não vivi pouco. O meu quarto aqui no asilo é o mais movimento. E não é por acaso. Sempre soube receber. Quando meus filhos me internaram achando que iriam por fim a minha vida sexual, mal sabiam que ela só ficaria mais animada e rentável. Afinal, sempre soube receber. No começo, era tudo um hobby, quase uma brincadeira de criança. Com o surgimento das pílulas azuis passei a cobrar com desconto direto nas aposentadorias. Tem muito velho que gosta de bancar o esclerosado para não pagar. Faço fiado sim, mas só por crédito consignado. E nunca, mas nunca em mais de seis prestações. Posso ser velha, louca não.

quinta-feira, 19 de março de 2009

Colônia de Fungos

Fungos cresciam na sua pele durante a noite. Acordava sempre com o corpo todo branco tomado pelo bolor. Já tinha feito de tudo. Dormia de cortina em lençóis esterilizados. Tomava banho de duas em duas horas. Por fim, trocou o dia pela noite. Nada resolvia. Passou a usar tubos metálicos no nariz para que a colônia não lhe impedisse de respirar. Já na boca usava uma bexiga cheia de farinha e muito batom pedido em revista. Certo dia resolveu dormir dentro da piscina. Três semanas depois já respirava sem ir à superfície e bactérias zinguezangueavam em seus músculos.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Enumerações

Eu poderia enumerar os motivos para nunca mais querer você por perto. Um por um numa lista que daria pelo menos duas laudas em corpo 8 e fonte Times New Roman que ocupada menos espaço. Não, não é uma coisa que eu queria fazer. Desgastante para mim e creio ainda mais para você. Afinal, ninguém gosta de ter ser defeitos apontados, muito menos organizados, categorizados e publicizados. Mas, se você continuar insistindo em ficar me procurando e achando que ainda sinto alguma coisa por você (nunca senti, mas uso o “ainda” para não parecer tão frio), serei obrigado a dizer a todo mundo que detesto aquela sua blusa preta com estampa em stencil. Você a trouxe de São Paulo, mas mente dizendo que comprou em Manchester. Quando é que você cruzou o Atlântico? Você quer que eu espalhe por ai que você usa cinta? Ou que a cor do seu cabelo não é mesma dos seus pêlos pubianos? Imagine a cara das pessoas ao descobrirem que a faculdade de jornalismo que você cursa é um supletivo noturno! E se eu resolvesse fazer confissões de alcova? Tamanho, posições e fetiches... Não, só usaria desses artifícios bem no rodapé da lista. Porém, não deixaria de falar que você votou num candidato de extrema direita, mesmo fazendo campanha para um radical comunista. Você não sabe a diferença entre um e outro, mas finge muito bem.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Chamas

Você quer que eu diga como estou agora? Enrolada em um edredom verde com linhas beges que foram quadrados. Seria mais fácil dizer “xadrez”, mas nunca fui dessas garotas cheias de objetividade verbal. Deve ser por isso que é tão complicado para mim, dizer exatamente como eu estou nesse momento. Se você estivesse aqui pertinho, saberia que estou febril e isso se juntando a minha temperatura habitual quer dizer... Sempre me travo. Desculpa, desculpa. Vou continuar com a descrição. Por debaixo desse edredom, visto apenas uma peça. Será que você conseguiria adivinhar? Você sabe que nunca fui fã de calcinha e sutiã, então terá o que eu estou usando. É, acabo de perceber que o verbo “usar” é mais apropriado que “vestir”.