sábado, 22 de maio de 2010

Escada abaixo

O que aconteceu??? por favor, alguém me explica: o que aconteceu? é como se agora eu morasse em Pequim ou qualquer cidade chinesa. não tenho ideia. do nada, sem que eu percebesse, eu deixei de ser o que eu era. eu perdi o meu lugar, eu perdi meu território, separei meu espaço do tempo, perdi minha hora e tudo mais que poderia perder. mais uma vez, eu pergunto: o que aconteceu. eu era o bom amigo e virei a complicação. eu tudo e virei o nada. me diz, pelo menos uma vez, que seja a única, que seja curta, que seja obvia, mas que seja: o que aconteceu? sozinho, dessa vez, nesse momento, agora, eu não sei responder.

Nas minhas veias correm interrogações. meu coração bombeia dúvidas e meu cérebro não suporta. todas as exclamações, todos os pontos finais, tudo virou um apanhado de reticências. eu era resposta e hoje não sei o que sou. a minha mente é uma tela branca ou melhor em branco. nem isso eu sei. do meu sexto andar eu berro para que alguém me explique. do alto do morro também me esgoelo. fui jogado de olhos fechados pela escadaria. degrau por degrau, vou sendo ferido e mesmo assim não vejo o sangue sair da minha pele porque nas minhas veias há apenas interrogações. e por mais que tente e grite, eu não sei o que aconteceu!

terça-feira, 18 de maio de 2010

O tango do Manco

As luzes foram apagadas. E a música começou. O primeiro som foi o do bandoleon. Uno, dos, tres. Violão. Violão. Violão. Uno, dos, tres. Piano. Siete, ocho. Todos juntos. Não! Gritou algum numa quina da pista de dança. As luzes foram se acendendo gradualmente. Era ele, o Manco, dizendo que não podia dançar. Ele estava sentado no alto de um banco muito alto. Sim, no alto do alto. De lá, não havia nenhuma possibilidade de saberem que ele era manco – e muito menos O Manco. Não teve nenhum protesto das outras pessoas. Nem dos músicos. O Manco deu um sorriso. Era estranho. Parecia que ele também não ria direito, como se só uma parte da boca se abrisse. Era sinistro. O Manco tinha um nariz lindo. Era reto. Sem que ninguém pudesse evitar a música começou a tocar. Uno, dos... E surgiu o bandoleon. Os violões vieram na seqüência com uma rapidez ventânica. O piano ficou mudo. Todos começaram a dançar. A iluminação era bem fraca e azul. Num movimento ríspido, puxaram o Manco do banco. Ele caiu, mas logo o levantaram. Um homem sem cabelos. Ele deu as mãos ao Manco e o convidou para um dança. O Manco nem pensou em recusar. Seu primeiro passo foi um pulo. O segundo passo foi um pulo. E o terceiro passo também foi um pulo. O Manco pulava muito e assim ninguém percebia que ele mancava. Nem ele próprio. Tinha um passo mais elaborado. Ele parava no solo e levantava uma perna. Ele pulava e dava gargalhadas. Seus dentes refletiam a luz azul. Ele sorria para o teto com olhos fechados. E pulava. A pista era dele. Não havia dúvidas. Só dele!

domingo, 9 de maio de 2010

Rua Princesa Isabel

Um entrocamento da minha janela. Todas as grandes árvores foram cortadas. Pique-esconde nunca mais. Nem amigos antigos mais para isso há. É uma rua em que só conheço o começo e sempre estranho quando vou ao fim. Tão pequena e tal longa. Dizer que os melhores momentos da minha vida foram aqui é exagero. Palco dos primeiros melhores é mais realista. Muitas pequenas histórias e grandes narrativas pulverizadas em 23 anos de memórias. Mesmo assim, não quero mais voltar.

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Meu eterno quarto

As paredes esperam uma mão de tinta há cinco anos. As portas, o verniz que nunca veio. O ventilador funciona bem e ajuda a espalhar por todo o quarto a poeira acumulada em todas as lembranças. Na minha frente o quadro desenhado a giz de cera com a paisagem de Praça Artigas. Perto fica o guarda-roupa quase vazio, mas cheio de caixas – não falarei delas, prometo. Aliás, nem vou abrir a porta desse armário. A direita tem a estante. Uma CPU desligada, com um modem sem conexão, xícaras e canecas, CDs diversos e desimportantes, os souvenires de viagens passadas, garrafas de coca, as esculturas de barro da década de 90, uma gaveta que não vou abrir. Mais um quadro com um desenho do Outeiro da Glória. Um aparelho de som quebrado pede para ser jogado fora. Não tocará mais Björk nele. Bem do meu lado, a minha outra estante. Apenas livros. Quase todos capixabas, quase todos não lidos e quase todos jamais serão. Mais quadros. Três que formam o conjunto “Passando por ele”. Por fim, a cama. Quase vinte anos me suportando. O colchão já cola no estrado e solta muito pó. Tudo aqui solta muito pó. Principalmente, eu.