terça-feira, 28 de abril de 2009

Manchas de você

A cadeira está no meio da sala. Parada. Imóvel. Quente. Os jornais soltos se espalham a cada rajada de vento. Os Classificados estão grudados sobre a televisão. A minha camisa ainda pendurada na cama tem você em manchas. Assim como a minha parede e meu piso de mogno branco. É bem capaz que eu mesmo tenha manchas de você na minha pele. Pelo meu peito. Barriga. Lábios. E nuca. Se eu reparar bem vou achar o desenho de um leito de rio percorrendo minhas coxas e desaguando nos intervalos entre os dedos de um dos meus pés. Não vou desconsiderar as manchas mais profundas – na mente, na alma e na lembrança. É bem capaz que a nascente do tal rio seja bem no meio dos meus olhos, entre eles. Dificilmente, antes de chegar às pernas, tudo deve ter percorrido um acidentado caminho pelo meu corpo. Sou todo uma grande mancha de você, a ponto de, no final, ter apenas respingos de mim. Quando me olho no espelho pendurado em frente a cama, me enxergo transparente com veias expostas sem sangue e preenchidas por você. Venoso.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Pele de Veludo

Jamais freqüentei baile da terceira idade. Não sei jogar dominó e a tal regra do proibido dar caroço, me incomodava. Isso de ter que dançar com todo mundo não me agradava. Era só o que me faltava não poder recusar parceiro depois de velha. Sempre fui enxuta. Muito bem cuidada. Quarenta por cento da minha pensão era gasto em produtos da linha Renew. Ou seja, o mínimo que eu queria era bailar com homens de quarenta anos com fôlego de vinte in natura. E se tem uma coisa que aprendi nessa vida era saber exatamente onde encontrar o que precisa e pagar pelo preço justo.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Códigos e Alianças

Sempre achei tricô um porre. Quando meus netos nasceram, eu já sabia os códigos da Hermes e da Quatro Estações de cabeça. Nunca veio um só conjuntinho de cor diferente ou número menor. Desde nova achava cabelo grisalho um pavor e aderi ao acaju antes do baile de debutante. Nunca gostei dessa tradição de duas alianças após a viuvez. Quando meu primeiro marido morreu, transformei a aliança em um brinco – ela era fina e só deu para um. Dois dias após a morte do segundo, fiz o outro brinco e com o ouro que sobrou um pingente de coração trancado. Pena que não deu para fazer a chavinha.

sábado, 11 de abril de 2009

6 anos de Esfera dos Intocáveis

Um dia resolvi que teria um blog. Para contar histórias e causar intrigas. Escrevi sobre fatos e desenharia sobre fotos. Jogaria fumaça na verdade. Me esconderia nas palavras. Numa tarde comecei esse blog. Sem assunto. Sem computador. Sem estilo. Passou um ano, passaram dois, três, quarto e cinco anos. Numa noite qualquer esqueci de lembrar. Tudo estava tão diferente. E talvez esse esquecimento fizesse parte do blog ou melhor da Esfera dos Intocáveis. Hoje, seis anos depois eu tenho um blog. Por vezes, esqueço que o tenho. Mas, sempre terei. Sem fumaças, sem fotos, sem revisão e sem muitas coisas. Inclusive sem um sexto texto comemorativo!

sábado, 4 de abril de 2009

A chegada

Nunca fui tão feliz na minha vida. E olha que não vivi pouco. O meu quarto aqui no asilo é o mais movimento. E não é por acaso. Sempre soube receber. Quando meus filhos me internaram achando que iriam por fim a minha vida sexual, mal sabiam que ela só ficaria mais animada e rentável. Afinal, sempre soube receber. No começo, era tudo um hobby, quase uma brincadeira de criança. Com o surgimento das pílulas azuis passei a cobrar com desconto direto nas aposentadorias. Tem muito velho que gosta de bancar o esclerosado para não pagar. Faço fiado sim, mas só por crédito consignado. E nunca, mas nunca em mais de seis prestações. Posso ser velha, louca não.