terça-feira, 27 de maio de 2014

Florença em dois tempos


Não, não foi amor à primeira vista. Eu te olhava ali parada e senti o calor vindo junto com um vento fraco. Caminhando por aquela pista e surdo pelo barulho das turbinas. Olhei para ele também. Cabelo raspado lateral, calça jeans cintura baixa e sorriso de ruborizar qualquer cafajeste. Lugar comum. Nunca cansa. Nunca canso. Ninguém cansa. Eram tantos destinos, formas de ir e nenhuma de ficar. Uma estação no meio do vazio. Via a cidade brotando do meio das ruelas. Via para a direita. Via para a esquerda. Um terremoto e Santa Maria del Fiori nos vesga com seus detalhes. São escadas que não param de subir. Falam espanhol e entendem português. São portas que não param de se abrir. Parlam italiano. Não servem capuccino, não gostam que peçam que mude o ponto da carne e se recusam a comentar sobre molho pesto. Ele canta entre as mesas desocupadas. Joga charme para os guardanapos e para a caixa registradora. Sorri e tenta explicar sem cantar que a minha mochila estava ficando para trás. 

O carrossel joga a gente sempre para o mesmo lugar. Mas, quando se tem tempo, repetir os quarteirões é a graça do jogo. O rio Arno flui tão lento como se cada gota também quisesse se eternizar como cada edifício, pedra de rua ou ponte. A Vecchio nada mais que uma favela renascentista. Não há deboche ou heresia. Apenas não há paixão. Mama fala para ir com ela enquanto se equilibra nos saltos pretos. Todos acordam junto com o sol e esperam por Davi. Esperam pelos degraus da igreja. Temos apenas frio, preguiça e fome. Mergulhar em imenso foccaccio é a distração. Ela caminha a passos lentos e pede euros. Ganha pão, queijo e salame. A coca-cola é cara o suficiente para transformar uma possível caridade em mecenismo. O trem corta a Toscana. Prato Centrale. Desce.Sobe. Bolonha. Desce de novo. Sobe mais uma vez. E vai para o Veneto. 

***

Havia uma má vontade e nenhum desejo de voltar. O estomago não reclama em não ganhar um carbonara e brinda àquele Quarto de libra. Os óculos, os fones coloridos e bugigangas afins custam 20. A polícia chega e tudo vai para o papelão ou trouxa. A polícia vai e as bancas improvisadas reaparecem. Uma negociação e os óculos custam 5. O fone jaune c’est cinq. Amarelo também é a nova cor do rosto. Também por cinque. Pelo dobro, o tênis é vermelho. Ele tirava cada tulipa de chope como quem ordenha uma cabra premiada. O roteiro da comida já é conhecido e sabor deve ser a surpresa. Boa. A gente se perde na margem do rio e se encontra na ponte Américo Vespúcio. O vinho é servido em copos descartáveis como seu corpo e seus sentimentos. Rico, o bulldog, olha para a gente como olhar de bilheteiro de cinema de rua sobrevivente.

Um atalho na noite e a estação aparece simples. Já havia uma empatia. Cada esquina já era motivo de rir. Florença, Firenze, Florence ou Florezia. Todo mundo queria uma lasca da sua história e tantos outros em idiomas e expectativas diversas. Eu andava com meu casaco azul surrado e reverberando todas as taças e copos de vinho da noite. O carro azul passa na contramão e para. O farol chama. A buzina chama. E a curiosidade berra. Uma senhora de cabelos desgrenhados como uma peruca velha acena. Robe aberto exibindo o corpo rechonchudo massacrado pelo espartilho apertadíssimo. Um convite lingual para uma cross-aventura pela Toscana. Grazie, mas não.

sexta-feira, 23 de maio de 2014

der Feigling

Olha para essa janela e acha que essa vista é tudo? Você sabe que não. Nós sabemos que não! Cada exclamação sabe que não. Segura esse copo cheio de vodka com gelo e fica hipnotizado pelo barulho das pedras batendo umas contra as outras. Tudo vai derreter e você vai ser obrigado a aguentar o silêncio. Vai torcer para um carro passar em alta velocidade ou um mendigo encachaçado gritar e quebrar garrafas pela rua. Vai ter que ouvir a minha voz gritando bem dentro do seu ouvido. “Covarde!”.  Só vou precisar falar uma vez e depois co var de vai ecoar dentro da sua cabeça. E será a sua voz que vai te perturbar.  Sua risada sarcástica vai arranhar seus tímpanos e vai te deixar louco como se uma abelha tivesse entrado por sua orelha.  E depois de mais um tempo essa abelha vai começar a se multiplicar e logo uma colmeia zumbindo e berrando: COVARDE!  A abelha-rainha logo  começará a se alimentar de cada um dos seus neurônios. O zangão dos seus sentimentos. As operárias vão querer devorar seu corpo inteiro por dentro. Ferrões vão brotar no lugar dos seus pelos. Ninguém vai mais poder te tocar. Eu não vou mais. E nem você mesmo vai conseguir encostar sem arder.  Sabemos que logo chorará de raiva, depois de tristeza, de revolta e depois de arrependimento. Suas lágrimas serão de mel e logo ficará todo lambuzado. Vai atrair vespas rivais e sua pele melada vai virar um campo de batalha. Só te restará ficar paralisado, sozinho, no meio de um parque frio e com árvores sem folhas.  Vai sentir saudade da minha voz e nessa hora, eu continuarei mudo.