segunda-feira, 26 de junho de 2017

Galho


Você nunca deveria ter ido a aquele aeroporto. Hoje, me veio a imagem perfeita de você me esperando em frente o check in. Sentado no chão, ouvindo música - The Smiths, Bowie ou The Cure? - e com um sorriso amarelo. Não tinha dentes bonitos. Quem pode acreditar que no meio disso tudo, eu reparei nos seus dentes? Me disse que se sentia estranho. Não tínhamos muito assunto. Era a segunda vez que nos encontrávamos. A primeira vez à paisana. E provavelmente, era para ser a última de qualquer modo. Eu queria que aquele terminal fosse maior, torcia por um overbooking ou um simples atraso de muitas horas. A gente se olhava e parecia que um refletia o desejo o outro de maneira tão explícita que não era necessária uma só interjeição. Eu tinha que embarcar. Nos abraçamos.  Era para ser o último abraço. Nos beijamos. Era meu primeiro beijo fora da bolha. Entreguei meu passaporte e segui com meus neurônios dançando flamenco. Uma castanhola ecoando no tórax. Eu já estava dentro do avião esperando a decolagem quando percebi que brotava algo nos meus pés. Tentei chamar a aeromoça, mas ela precisava ajudar um casal com gêmeos choramingantes. A sola dos meus pés coçava e eu tirei meu tênis. Minhas meias estavam rasgadas. Minha pele se abria e meu dedos iam se envergando com garras. Um tipo de galho espinhoso ia saindo depressa do meu calcanhar esquerdo e foi perfurando o chão do avião. Alarmes começaram a soar. Eu percebia toda movimentação da tripulação e tentava avisar o que estava acontecendo comigo. Eles só pediam para eu ficar calmo e não me ouviam. Senti uma pequena queimação quando o ganho avançou pelo asfalto da pista e depois pelo solo. O comandante avisou que por problemas técnicos, iríamos precisar desembarcar. Organizaram a saída. Eu não conseguia me levantar. Os passageiros ao meu lado estavam impacientes. Apontei para baixo e eles simplesmente se limitaram a pular por cima de mim. Falaram alguns desaforos e foram embora. Finalmente, um comissário veio até mim. Tentava ser educado, mas pedia para eu sair do avião imediatamente. Mostrei aquele galho que tinha surgido de dentro de mim. Ele não soube o que falar e muito menos esconder o espanto. Do lado de fora, uma equipe grande se movimentava e inspecionava aquele rombo na fuselagem da aeronave. Já sabendo a origem, não demoraram para chegar até meu assento. O avião não poderia ficar parado na pista por muito tempo. Os voos seguintes precisavam de espaço. “Vamos serrar esse galho”. Eu não tinha opção. Apenas tentava entender como aquilo tinha acontecido comigo. “Não conseguimos”. E nada mais que essas duas palavras junto com uma cara desespero. Pedi uma faca e disse que cortaria meu pé fora. Seria um corte e tudo resolvido. Tudo mudou. O galho agora crescia em direção oposta e eu fui sendo levantado para fora da cadeira até bater a cabeça forte no teto. Todo em silêncio. O céu ia aos poucos surgindo. Menos de um minuto e já estava acima do aeroporto. Eu via os prédios, o rio, os bosques, os cemitérios e tudo que tinha em volta. Sentia o peso das nuvens e frio da altitude. Estava num estágio que há bem depois do medo e eu nem sabia que existia. Bem baixo escutava um ruído bem agudo. Não tinha mais castanhola, ninguém mais dançava flamenco. O ruído foi crescendo. Outros sons estranhos foram aparecendo. Um estrondo. Um grito. Senti uma dor forte no pé. Os dedos voltavam a forma normal. O galho foi enfraquecendo até ficar morto até ficar podre até quebrar. E eu despencar em queda livre e parar no mesmo lugar de onde eu já nem lembrava ter saído.

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