sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O Jogo

Ela pensava que era um jogo sem regras. Achava interessante a idéia jogar por jogar e ainda ganhar no final. Achava que tudo seria como uma grande corrida em um descampado plano ao vento. Se imaginava de cabelos soltos e deixando tudo fluir de maneira livre. A graça e o objetivo do jogo era esse: liberdade. Quando o que se poderia chamar de partida começou, ela percebeu que havia regras. Muitas regras. E que elas iam surgindo e mudando à medida que ela jogava. Não jogava sozinha, obviamente. Ela percebeu que a liberdade até poderia existir mas no lugar de uma planície, um misto terreno arenoso acidentado. Não era possível sair correndo ao acaso. Era preciso entender cada nova regra e a sua conseqüência. Assim, tudo foi sendo feito.

Conheceu aquela linda uruguaia na saída do metrô do Flamengo. Uma espécie de esbarrão. Lucia preferia dizer que elas se chocaram. Como duas placas tectônicas. Os efeitos ainda estão sendo medidos, mas por dias elas sentiram um terremoto dentro de seus peitos. Lucia falava um português tão peculiar que sempre chamava a atenção dos interlocutores. Não era uma questão de sotaque. Era a construção das frases e a velocidade com que pronunciava  as palavras. Representava no tempo o sentido do que queria dizer. Para Lúcia, tinha lógica, é claro. E depois de uma semana juntas, Mélia passou a falar do mesmo jeito.

O primeiro passo de Mélia, durante o jogo, foi olhar para os olhos de Lúcia de uma maneira que em instantes ela estivesse percorrendo a mente da outra. Lúcia deveria apenas se manter calada e jamais fugir o olhar. Essa talvez tenha sido a primeira regra a ser criada.  Mélia caminhava pelos pensamentos da uruguaia com o cuidado de não derrubar nada. Não que fosse proibido o passeio lá dentro, entretanto Mélia deveria sair da mesma maneira que entrou. Quando fechou os olhos e cortou a conexão com Lúcia, conheceu uma nova regra: deveria agir como se não tivesse visto nada e como se não soubesse dos traumas, medos e, sobretudo as mentiras de Lúcia. As descobertas não eram para ser esquecidas, mas deveria ser ignoradas como um bibelô barato que insiste em enfeiar a sala de estar. Por algum motivo ele precisa ficar ali na estante, gostando dele ou não.

Mélia era carioca. Não achava que isso determinava nada na sua vida além de um gentílico a ser preenchido em alguma ficha cadastral. Mesmo antes de conhecer Lúcia, ela não chiava nos esses e nos xis. O erre era sutil, porém com uma pronúncia arredondada com uma bola de bilhar. Seu cabelo parecia estar sempre impecável, como se ela gastasse horas o deixando daquela maneira. E ela realmente gastava. Dormindo. Ao acordar, tudo pronto e ela só se preocuparia em escovar os dentes. Tão brancos.

A intensidade que Lúcia iria morder Mélia era ilimitada. Se os caninos encontrassem com os ossos da carioca era prudente não avançar, mas ela poderia seguir se tivesse forças. Mélia poderia gritar desde que houvesse oscilação no tom e os intervalos de respiração não fossem mais fortes e demorados que meio centímetro de mordida. O tempo era medido com uma régua.  Antes que possa parecer, não era um joguete sádico. Primeiro porque não trabalhavam com o conceito de dor – talvez nem com o de prazer – e porque as duas tinham pavor de couro, máscaras ou chicotes (por certo, tinham uma visão primaria da prática sado-maso).

Descrever as regras, consequências e as implicações do jogo seria uma bobagem. Seria cansativo e seguramente ao fim da listagem, o jogo teria outras novas. Seria fácil classificar com um jogo que muda toda a hora. Mas, nem hora ele tinha e na impossibilidade de fixação, havia a impossibilidade de se falar em mudança. Uma vez iniciado, não tinha volta – a última regra a ser conhecida. O término era de uma sutileza tão complicada, tão minimalista que podia ser bem árida. O jogo acabava quando tinha que acabar, mas perceber um fim fazia também parte dele.


Mélia e Lúcia sabiam disso.  Ignorar era preciso. Até o dia em que Mélia levou Lúcia até a mesma estação de metrô que se conheceram e juntas desceram até a plataforma de embarque sentido Zona Norte. Lúcia olhou para Mélia e sorriu. Esperaram o metrô para a Saens Peña que só passou depois de cinco rumo a Pavuna. Quando o letreiro informou que o próximo era finalmente o que elas queriam, Mélia comemorou. Foram  caminhando para a parte do meio da plataforma. O barulho do trem ia tomando conta da estação enquanto ele ia se aproximando. As luzes no fim da galeria iam surgindo. Lucia sorriu mais uma vez. E Mélia a empurrou forte nos trilhos antes que pudesse perceber que era mais um metrô sentido Pavuna. 

Nenhum comentário: