Ela pensava que era um jogo sem regras. Achava interessante
a idéia jogar por jogar e ainda ganhar no final. Achava que tudo seria como uma
grande corrida em um descampado plano ao vento. Se imaginava de cabelos soltos
e deixando tudo fluir de maneira livre. A graça e o objetivo do jogo era esse:
liberdade. Quando o que se poderia chamar de partida começou, ela percebeu que havia
regras. Muitas regras. E que elas iam surgindo e mudando à medida que ela
jogava. Não jogava sozinha, obviamente. Ela percebeu que a liberdade até
poderia existir mas no lugar de uma planície, um misto terreno arenoso
acidentado. Não era possível sair correndo ao acaso. Era preciso entender cada
nova regra e a sua conseqüência. Assim, tudo foi sendo feito.
Conheceu aquela linda uruguaia na saída do metrô do
Flamengo. Uma espécie de esbarrão. Lucia preferia dizer que elas se chocaram.
Como duas placas tectônicas. Os efeitos ainda estão sendo medidos, mas por dias
elas sentiram um terremoto dentro de seus peitos. Lucia falava um português tão
peculiar que sempre chamava a atenção dos interlocutores. Não era uma questão
de sotaque. Era a construção das frases e a velocidade com que pronunciava as palavras. Representava no tempo o sentido
do que queria dizer. Para Lúcia, tinha lógica, é claro. E depois de uma semana
juntas, Mélia passou a falar do mesmo jeito.
O primeiro passo de Mélia, durante o jogo, foi olhar para os
olhos de Lúcia de uma maneira que em instantes ela estivesse percorrendo a
mente da outra. Lúcia deveria apenas se manter calada e jamais fugir o olhar.
Essa talvez tenha sido a primeira regra a ser criada. Mélia caminhava pelos pensamentos da uruguaia
com o cuidado de não derrubar nada. Não que fosse proibido o passeio lá dentro,
entretanto Mélia deveria sair da mesma maneira que entrou. Quando fechou os
olhos e cortou a conexão com Lúcia, conheceu uma nova regra: deveria agir como
se não tivesse visto nada e como se não soubesse dos traumas, medos e,
sobretudo as mentiras de Lúcia. As descobertas não eram para ser esquecidas,
mas deveria ser ignoradas como um bibelô barato que insiste em enfeiar a sala
de estar. Por algum motivo ele precisa ficar ali na estante, gostando dele ou
não.
Mélia era carioca. Não achava que isso determinava nada na
sua vida além de um gentílico a ser preenchido em alguma ficha cadastral. Mesmo
antes de conhecer Lúcia, ela não chiava nos esses e nos xis. O erre era sutil, porém
com uma pronúncia arredondada com uma bola de bilhar. Seu cabelo parecia estar
sempre impecável, como se ela gastasse horas o deixando daquela maneira. E ela
realmente gastava. Dormindo. Ao acordar, tudo pronto e ela só se preocuparia em
escovar os dentes. Tão brancos.
A intensidade que Lúcia iria morder Mélia era ilimitada. Se
os caninos encontrassem com os ossos da carioca era prudente não avançar, mas
ela poderia seguir se tivesse forças. Mélia poderia gritar desde que houvesse
oscilação no tom e os intervalos de respiração não fossem mais fortes e
demorados que meio centímetro de mordida. O tempo era medido com uma régua. Antes que possa parecer, não era um joguete
sádico. Primeiro porque não trabalhavam com o conceito de dor – talvez nem com
o de prazer – e porque as duas tinham pavor de couro, máscaras ou chicotes (por
certo, tinham uma visão primaria da prática sado-maso).
Descrever as regras, consequências e as implicações do jogo
seria uma bobagem. Seria cansativo e seguramente ao fim da listagem, o jogo
teria outras novas. Seria fácil classificar com um jogo que muda toda a hora.
Mas, nem hora ele tinha e na impossibilidade de fixação, havia a
impossibilidade de se falar em mudança. Uma vez iniciado, não tinha volta – a última regra a ser conhecida. O término era de uma sutileza tão complicada, tão
minimalista que podia ser bem árida. O jogo acabava quando tinha que acabar,
mas perceber um fim fazia também parte dele.
Mélia e Lúcia sabiam disso. Ignorar era preciso. Até o dia em que Mélia
levou Lúcia até a mesma estação de metrô que se conheceram e juntas desceram
até a plataforma de embarque sentido Zona Norte. Lúcia olhou para Mélia e
sorriu. Esperaram o metrô para a Saens Peña que só passou depois de cinco rumo
a Pavuna. Quando o letreiro informou que o próximo era finalmente o que elas
queriam, Mélia comemorou. Foram
caminhando para a parte do meio da plataforma. O barulho do trem ia
tomando conta da estação enquanto ele ia se aproximando. As luzes no fim da
galeria iam surgindo. Lucia sorriu mais uma vez. E Mélia a empurrou forte nos
trilhos antes que pudesse perceber que era mais um metrô sentido Pavuna.
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