quinta-feira, 27 de novembro de 2008

O Sanduíche

Provavelmente a idéia de ir àquela lanchonete metida a besta não tinha sido dele. Sempre se entediou com comidas que exigissem um ritual maior que olhar, pegar e levar a boca. Não a toa, para ele, nada mais pretensioso que culinária japonesa. Rejeitava com todas as forças o vegetarianismo por achar uma babaquice o “sentir a comida”. Apesar das restrições, era uma pessoa sociável e para ela abria várias exceções, fazia diversas concessões. Logo, dizer que estava ali forçado, de frente ao balcão, era inverdade. Mesmo com toda cara blasé, de fato, estava feliz. Tentava ser altruísta.

Pedir um sanduíche não seria um grande mistério. Escolheu o pão - “integral”, o recheio - “presunto, do de porco mesmo”. Na dúvida - ou desconhecimento - dos molhos, “não poe nenhum”. Pensou melhor. Podia não ter noção do que significava chipottle, mas compreendia o aviso de “picante” ao do nome do molho. Achou uma perda de tempo que embalassem tudo com tantas voltas de papel sendo que ele desembrulharia em coisa de cinco passos. Pegou sua bandeja e foi encontrar com ela que estava sentada numa mesa na calçada com um casal de amigos gays cinéfilos e uma amiga recém separada. Ele achava todos presunçosos. E eles sabiam disso – num um jogo da verdade, ela tinha relevado. Mas, ele não imaginava que eles sabiam e assim se comportava. No fundo, ela sentia que todos naquela mesa a invejavam. E disso, ele tinha certeza absoluta – de alguma maneira, todos passavam isso no olhar, por mais irônicas e ácidas que fossem suas palavras para ele.

Vejam como ele demorou para fazer o sanduíche. Deve estar sentindo falta da mortadela e do ovo frito – comentou uma das bichas enquanto todos riam, inclusive ele que se sentava e ajeitava o pé da cadeira preso numa das fretas do piso de madeira. Rasgou as voltas de papel que mumificavam o sanduíche com a voracidade de quem se incomoda em não ver a cor da comida. A amiga fez cara de “como ele é ogro” e começou a fala sobre a última cena do filme que eles tinham acabado de assistir num festival. Ele tinha cochilado toda a metade inicial do filme. Quando acordou e percebeu que ainda estava na “mesma cena”, resolveu voltar a dormir – acomodado no ombro dela que lhe acariciava os cabelos ainda curtos do último corte a máquina que ela tanto gostava.

Ele gostava da maioria do cinema europeu desde que falado em palavras que sinalizassem alguma emoção, coisa que não percebia em filmes nórdicos e do Leste. A amiga dizia que tudo naquele filme a lembrava do trabalho de um diretor obscuro da China que sido influenciado pela vanguarda russa e pela filosofia sul-coreana. O outro amigo gay concordou em parte. Acreditava que havia um certo resquício de cinema escandinavo alternativo do início da década de 80, o que deveria ser resultado de algum intercâmbio cultural clandestino feito pelo diretor na época em que exercia atividade diplomática na embaixada em Helsinque.

O outro gay disse, limpando seus óculos embaçados, que havia um detalhe não apontado por nenhum deles e que era fundamental para o peso da trama. Também comentou sobre que a interpretação – extraordinária E soberba – da protagonista sinalizava que mais um Urso de Prata estava a caminho e seria recusado mais uma vez, como ela fazia com todos os outros prêmios. A diva não suporta nenhum tipo de competição e sempre acredita que isso só incentiva a exploração do homem pelo homem – informou empolgado enquanto recolocava os óculos.

Ela ouvia tudo atentamente até intervir dizendo que eles buscavam explicações formalistas e que com isso não se deixavam envolver pelas cenas cuja fotografia de tão bela a fez chorar por vezes. Era como se eu estivesse tête-à-tête com todas as principais telas do expressionismo mundial fundidas. Ele se escondia atrás do sanduíche e se limitava a mastigar. Me arrepio - disse ela indicando os pelos do antebraço onde exibia uma pulseira de marfim que ele tinha comprado e ela escolhido.